terça-feira, 3 de junho de 2008

FOTOGRAFIA, ENSINO E CELULARES III


O ato de fotografar exige do fotógrafo a compreensão de que o produto final não é somente uma fotografia, é um texto fotográfico que se apresenta para a observação e vai além da contemplação. O concreto e os elementos objetivos orientam o fotógrafo, mas é na subjetividade que ele pode expressar e relacionar seus conceitos mais profundos com a imagem que a ocular lhe oferece. Os segundos que antecedem o disparo são solitários e silenciosos. É quase como o êxtase da expectativa de uma torcida de futebol quando se antecede a possibilidade do gol.
Barthes fala que toda fotografia é uma comprovação da presença do fotógrafo. O “isso foi” noema fotográfico de Barthes é estruturado pela presença real daquele que registrou, mas não basta a presença para que o registro tenha caráter de realidade. Este caráter é diluído pelos cortes, escolhas e decisões tanto do fotografo quanto do editor de fotografia. Exemplo disso é o corte que as fotos do atentado em Madri e a polêmica que as fotografias causaram.
No fotojornalismo, a credibilidade do jornal no qual a imagem se apresenta, agrega valor de legitimidade a ela. Souza apresenta um estudo realizado por James Kelly e Diona Nace, no qual os autores chegaram à conclusão de que “quando a publicação é credível a credibilidade da foto tende igualmente a atingir maiores níveis de credibilidade, e vice-versa”.
Esta curta reflexão sobre o exercício do fotojornalismo mostra que a profissão apresenta contornos complexos que envolvem o aparato técnico; a inclinação ideológica do suporte (jornal) da imagem; os elementos de verdade que o agente fotografado deixou transparecer; a observação igualmente subjetiva do leitor e, principalmente, a subjetividade daquele que registra.
A câmera/celular imprime na construção do olhar fotográfico, algumas facilidades. A simples e maravilhosa possibilidade de registrar tudo e imediatamente deletar o que não presta, ou não é de seu gosto, suprimiu do olhar aprendiz as possibilidades de construções elaboradas que permitem, justamente, compreender a fotografia como linguagem. Não simplesmente um conjunto de códigos numéricos que podem ser rearranjados em poucos segundos.
A ação daquele que empunha seu celular em todos os eventos e passa a registrar tudo que lhe parece interessante, é parecida com a daqueles ao ter uma câmera fotográfica, após a popularização da fotografia no final do sáculo XIX. O registro banal, corriqueiro, ou então particularmente importante como casamentos, nascimentos e mortes, tornou a ato de fotografar algo parecido com um rito.
Sontag ao refletir sobre esse uso popular mais antigo da fotografia, afirma que
“Por meio de fotos, cada família constrói uma crônica visual de si mesma – um conjunto portátil de imagens que dá testemunho de sua coesão. Pouco importam as atividades fotografadas, contanto que as fotos sejam tiradas e estimadas. A fotografia se torna um rito da vida em família exatamente quando, nos países em industrialização na Europa e na América, a própria instituição da família começa a sofrer uma reformulação radical. (...) Esses vestígios espectrais, as fotos, equivalem à presença simbólica dos pais que debandaram. Um álbum de fotos de família é, em geral, um álbum sobre a família ampliada – e, muitas vezes, tudo o que dela resta.
Da mesma forma o registro de tudo e todos em qualquer momento por meio da câmera/celular parece ser um rito, no qual a relação de poder se estabelece não só pela qualidade do aparelho, mas também pelas relações sociais que são registradas. As fotografias anexadas nas páginas digitais de fotologs, orkut e msn parecem equivaler ao registro legal da capacidade de se fazer amigos, ser bem quisto.
Pode-se comparar novamente uma fala de Sontag sobre a popularização da fotografia com as mudanças atuais:
“Em época recente, a fotografia tornou-se um passatempo quase tão difundido quanto o sexo e a dança – o que significa que, como toda forma de arte de massa, a fotografia não é praticada pela maioria das pessoas como uma arte. É, sobretudo um rito social, uma proteção contra a ansiedade e um instrumento de poder”.
Desta maneira a fotografia, que é um código repleto de significados e que exige um apurado senso ético e estético para ter real valor, tem esse valor diluído na possibilidade daquele fotografo que pode reter o maior número de histórias sobre si mesmo e não sobre o seu entorno, embora pareça o contrário. Registrar amigos não é falar de amigos, mas sim falar de quantos ou quais amigos/relações sociais se é capaz de reter.
Daí surge a quase surpresa daqueles que nasceram sob o código numérico (digital), quando são inquiridos sobre a fotografia como linguagem/diálogo. Para a maioria ela é um aparato para guardar lembranças.

continua...
foto: antes de uma tempestade em Itaiacoca, interior do Paraná.

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